domingo, 5 de agosto de 2018

Dívida e Resgate

Dívida e Resgate

     Na antevéspera do Natal de 1856, Dona Maria Augusta Correia da Silva, dona de grande fazenda às margens do rio Paraíba, retornava à casa após um ano de passeio na Corte Imperial.

     A orgulhosa matrona, naquela tarde chuvosa e escura, recebia os sessenta e dois cativos que, humildes e sorridentes, lhe pediam a bênção.

     Assentada em grande poltrona, fazia um gesto de complacência, à distância, para cada escravo que exclamava de joelhos:

      - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, "sinhá"!

     - Louvado seja! respondia Dona Maria augusta com terrivel severidade.

     Entre os escravos, porém, sentada em um canto da sala estava pobre moça mestiça, com duas crianças recém nascidas, e sob o olhar vigilante de feroz capataz.

     Foi a última que se aproximou para a saudação.

     A fazendeira levantou-se raivosa e antes que a pobrezinha lhe dirigisse palavra gritou: " - Matilde, guarde suas "crias" na senzala e venha ao terreiro, precisamos conversar".

     E afastando-se do recinto, na direção do quintal, Dona Maria Augusta e o capataz de chicote em punho, cochichavam entre si.

     - Acompanhe-nos! Gritou, dirigindo-se à pobre Matilde.

     Guiadas pelo rude capitão do mato, chegaram até a transbordante margem do rio Paraíba.

     Nuvens enormes coavam no céu os medonhos rugidos de trovões..

     Dona Maria pousou o olhar coruscante na mestiça humilhada e falou:

     - Diga de quem são essas duas "crias" nascidas durante a minha ausência!

     - De seu filho "Nhô" Zico, "sinhá" !

     - Miserável - bradou a proprietária poderosa - meu filho não me daria tão grande desgosto. Diga que é mentira!!!

     - Não posso! Não posso!

     A patroa encolerizada relanceou o olhar pela paisagem deserta e bramiu, rouquenha:

     - Nunca mais verá você essas crianças que odeio...

     - Ah! "Sinhá" - soluçou a infeliz - não me separe dos meus meninos! Pelo amor de Deus!...

     - Não quero você mais aqui e  suas "crias" serão vendidas.

     - Não me expulse "Sinhá"! Não me expulse!

     - Desavergonhada, de hoje em diante você é livre!

     E depois de expressivo gesto ao capataz, falou, irônica:

     - Livre você poderá trabalhar noutra fazenda e comprar de volta suas "crias" malditas.

     A escrava sorriu, em meio de choro convulsivo, e exclamou:

     - Ajude-me então "Sinhá" , se é assim darei meu sangue para reaver meus filhinhos ...

     Dona Maria indicou-lhe o rio Paraíba enorme e sentenciou:

     - Você esta livre, mas fuja da minha presença. Atravesse o rio e desapareça.

     - "Sinhá", assim nâo! Tenha piedade de sua cativa. Não sei nadar! Ai, Jesus! Não posso morrer ...

     Mas, a um sinal da patroa, o capataz estalou o chicote nas costas da jovem, que oscilou, indefesa,  caindo na corrente profunda.

     - Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me Nosso Senhor - gritou a mísera debatendo-se nas águas.

     Todavia, daí a instantes, apenas um cadáver de mulher descia rio abaixo, ante o silêncio da noite...

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     1956 : Cem anos passaram ...

     Na antevépera do Natal de 1956, Dona Maria Augusta Correia da Silva, agora reencarnada, estava na cidade de Passa-Quatro, no sul de Minas Gerais.

     Mostrava-se noutro corpo, mas era ela mesma, com a diferença de que, ao invés da rica fazenderia, era agora sofrida mulher, em rigorosa labuta para ajudar o marido na compra do pão.

     Sofia no lar as privações dos escravos de outro tempo.

     Era mãe, padecendo aflições e sonhos... Pensava nos filhinhos. ante a espectativa do Natal, quando a chuva começou a desabar no telhado cada vez mais forte.

     Horrível temporal desabou na região.

     A enchente arrastava tudo em volta da casinha humilde.

     A pobre senhora vendo a água invadir-lhe os aposentos, saltou para fora, seguida do esposo e das crianças...

     As águas, porém subiam em turbilhão envolvente e destruidor, arrastando tudo.

     Diante da ex-fazendeira a enchente era um rio inesperado e imenso e, em dado instante, esmagada de dor, ante a violenta separação do marido e dos pequeninos, tombou na enxurrada, gritando em desespero:

     - Socorro!   Socorro, meu Deus!   Valei-me Nosso Senhor!

     Todavia, decorridos alguns momentos, apenas o cadáver de uma mulher descia corrente abaixo, ante o silêncio da noite...

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     A antiga fazendeira do Vale do Paraíba resgatou o débito que assumira perante a Lei.

(Extraído e adaptado do livro Contos e Apólogos. Irmão X; psicografia. de Chico Xavier)